sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Medidas de segurança do paciente têm resistência de médicos, diz anestesista


Medidas de segurança do paciente têm resistência de médicos, diz anestesista

Ricardo Mioto e Gabriel Alves

A alta mortalidade dos pacientes no país está relacionada com a grande quantidade de erros médicos –ou "eventos adversos", no jargão–, diz o médico anestesista Enis Donizetti Silva, 55, presidente da Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo.

Enis aponta resistência dos médicos, tanto em na rede pública quando em hospitais de elite, a procedimentos padronizados e mesmo a medidas simples como lavar as mãos.

Ele capitaneia a criação da Fundação para a Segurança do Paciente, que congrega várias entidades médicas e será lançada em novembro.

Folha - Por que uma fundação pela segurança do paciente?
Enis Donizetti Silva - Se você ficar internado uma semana em um hospital brasileiro, é muito grande a chance de acontecer algo errado com a sua medicação. Dose errada, hora errada, paciente errado, medicação errada. São quase 40% de eventos adversos nos hospitais brasileiros, contra 15% em outros países.

Como se faz essa conta?
Contamos todo mundo que entra no hospital. Isso é o que consideramos 100%. De todos esses pacientes, no Brasil, quase 40% tiveram eventos adversos. O que são eventos adversos? É o que antigamente chamávamos de erro médico: tudo que sai fora do padrão estabelecido de diagnóstico ou tratamento e trouxe algum dano ao paciente.

Mas convenhamos que, a 40%, a mensagem é que é melhor ficar em casa...
Sem dúvida. Há alguns caminhos para reduzir isso, como checklists. É como quando um avião vai voar. Combustível? Instrumentos de voo? Na medicina é a mesma coisa. É este o paciente mesmo? É esta a perna certa? Mas poucos hospitais brasileiros fazem checklists. Em geral, só os que procuram ter acreditação [certificações internacionais de qualidade].

Mas há também uma resistência altíssima dos médicos ao checklist, não?
Muito grande. Total.

Até porque em geral ele não é comandado pelo médico.
É o enfermeiro, o técnico.

Então isso significa uma perda de poder do médico.
Sim. Quando você implanta uma cultura de segurança, você dá poder ao lado mais fraco: técnicos, enfermeiros, fisioterapeutas. O médico vai perder aquela aura. E isso tem de ser ensinado desde a faculdade. Porque o que ensinam hoje é que eu vou lá, examino, faço diagnóstico, estabeleço o tratamento e... dou uma ordem para a enfermeira.

Muitos médicos dizem que realizar checklists é burocratizar a medicina.
Depois que uma cultura está estabelecida, é difícil mudá-la. Ainda temos muitos problemas com médicos que não lavam a mão. Mas veja: na faculdade, não há aulas sobre a importância da lavagem. Resultado: mais de 90% dos casos de infecções de corrente sanguínea e infecção associada a cateter estão associadas a isso...

Quando surgiram as acreditações, elas eram tratadas jocosamente. "Vou preencher a burocracia." Médicos são às vezes um entrave a mudanças importantes.

É importante, por exemplo que os dados do paciente sejam anotados em um sistema eletrônico. Assim não vou injetar dipirona no paciente alérgico porque esqueci, porque não estava na minha ficha, porque a caligrafia do outro era incompreensível.

Se temos tantos problemas de procedimento, parece um tanto claro que despejar dinheiro em hospitais com procedimentos falhos não vai resolver o problema.

Só vai piorar. O grande problema de eventos adversos não é falta de infraestrutura. É o processo. E olha que nossa média já é muito alta: a mortalidade hospitalar do SUS na modalidade cirúrgica é de 3,72%. Em outros países, esse valor é de 0,5%.

Sem falar no altíssimo tempo de internação. Não adianta eu recuperar sua pneumonia mas deixar você 27 dias no hospital, porque eu causei um monte de eventos adversos. Pacientes que deixamos duas semanas internados ficam só quatro dias no hospital no exterior. Isso cria filas enormes no sistema de saúde. Um paciente ocupa o lugar de cinco. Sem falar no risco de, lá pelo décimo dia de internação, alguém errar o seu remédio...

Além do checklist, o que mais pode ser feito?
Um estudo clássico americano mostrou que a taxa de mortalidade em cirurgia cardíaca feita em um hospital que fazia o procedimento 30 vezes por ano era de 27%. Em um hospital que operava 10 mil doentes por ano, 6%.

Por que isso acontece? Quando você faz um volume grande, começa a estabelecer algo como uma linha de produção: cria procedimentos, estabelece padrões. Desse modo, hospitais abaixo de cem leitos começaram a ser questionados e fechados nos EUA.

Mas sabe quantos leitos têm a maior parte dos hospitais brasileiros? Uns 50, menos. A incidência de complicações é altíssima, porque o médico vai fazer um determinado tipo de cirurgia só uma ou duas vezes por ano.

Fechar hospitais pequenos é uma bandeira um tanto ingrata... Fico imaginando que político vai querer falar isso na cidadezinha do interior.
É terrível. O que se pode fazer é criar níveis de cuidado, deixando tais hospitais com procedimentos mais simples.

Outra dificuldade política é apontar problemas de gestão de processos no SUS. Uma ala dos especialistas defende que isso é um jeito de desviar o foco do financiamento.

Pois é. Minha bandeira é esfarrapada, o mastro é fraco e o vento é forte. O que tem de bonito nos processos? Nada. Não há glamour. Não estou falando em tratamento nos melhores lugares. Não estou falando em transporte de helicóptero, de jato, em superUTI. O que digo é justamente que o helicóptero, o jato, a superUTI podem contribuir enormemente mal para sua saúde.

Mas é difícil. Porque o que todo mundo quer é ter o plano top da Omint, da SulAmérica. Mas às vezes não é isso.

Nesse sentido, como é a situação da segurança do paciente em hospitais como o Sírio-Libanês ou o Einstein? Parece que mesmo eles têm problemas.

Eles vão bem na maior parte dos indicadores, até porque eles têm uma marca a proteger, mas há várias falhas, e eles sabem que há problemas graves. Uma questão é a própria lavagem das mãos. Os hospitais sempre fazem campanhas –e sempre fica claro que a adesão é baixa.

Uma das dificuldades desses hospitais é o fato de eles terem o corpo clínico aberto [ou seja, os médicos não são funcionários do hospital]. Isso dificulta padronizar processos. Aqui ficamos discutindo autonomia médica, se "o protocolo emburrece".

E quão factível seria não ter corpo clínico aberto?
É muito difícil. Porque, no nosso modelo, o paciente procura o médico, e o médico leva o paciente para o hospital. Então o hospital precisa cativar o médico. Imagina chamar o médico e dar bronca porque não lavou a mão... "Vai que ele fica chateado e não vai querer mais internar aqui..." Especialmente se você é um médico que põe 200 pacientes por mês no hospital.

Uma crítica comum a hospitais de elite é que eles seriam pequenas indústria de exames, procedimentos... Ninguém pisa neles impune, vai sair no mínimo com algum exame.

Vai sair. E temos de informar ao paciente que o excesso de exames traz prejuízos. O doente tem que saber que, ao pressionar o médico por um monte de exames desnecessários, está correndo risco. Porque os exames não são perfeitos. Tem falso positivo.

Eu já vi casos assim: um exame estava apontando uma alteração que só poderia ser confirmada por uma biópsia no fígado. Pegaram uma veia importante, teve sangramento. Aí teve de fazer uma cirurgia no abdômen para dar ponto no fígado. Foi para a UTI. Internação. Sabe qual o diagnóstico no final? Fígado normal.

Check-up bom é um bom exame clínico. Pegar uma lista de 40 exames e botar X em tudo? Pode ter certeza, seis ou sete virão com alterações.

É uma reclamação frequente dos pacientes: o médico é ruim, só ficou de conversinha, não pediu nenhum exame...


Exato. E virou uma indústria. É o lado perverso: o médico também quer bastante exame, até cirurgias, porque vai ter uma participação.
Fonte - FOLHA DE SÃO PAULO

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